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Áreas de Contaminação, Espectáculo, Poder: Arquitectura Radical a Nu

Em Novembro de 2006 foi inaugurada na Storefront for Art and Architecture de Nova Iorque uma exposição com o título Clip, Stamp, Fold: The Radical Architecture of Little Magazines 196X-197X1. Esta exposição revelou o papel central que as little magazines desempenharam num período em que o debate arquitectónico conheceu um dos seus momentos mais intensos. O adjectivo “little” não diz respeito ao tamanho ou à tiragem, mas sim à sua condição de marginalidade em relação ao discurso institucionalizado académico ou corporativo. A sua radicalidade derivava da possibilidade de apresentar propostas arquitectónicas que exploravam e/ou combinavam a comunicação gráfica e a escrita para além dos limites disciplinares impostos pelos suportes convencionais.

O papel que as little magazines desempe-nharam nas décadas de 1960 e 1970 migrou na primeira década do século XXI para o mundo digital, podendo-se estabelecer um paralelo entre os dois contextos. Eran Neuman refere que em ambos os casos “o meio de comunicação foi impulsionado para o extremo como uma estratégia de exploração dos limites da disciplina tanto na teoria como na prática”2.

Apesar desta migração do suporte impresso para o mundo digital, ainda é possível observar focos de resistência, onde as revistas reivindicam um papel activo no debate arquitectónico contemporâneo. O caso português pode ser apresentado como exemplo. Depois do papel precursor que a revista Unidade desempenhou entre o final dos anos 1980 e durante os anos 1990, na última década apareceram (e desapareceram, em alguns casos) a In si[s]tu, aLaura, a ECDJ e a NU3

Das publicações referidas, a revista NU é a mais prolífica. Desde o seu primeiro número, publicado em 2002, já saíram 35 edições. A NU reivindica-se como uma publicação “essencial, imparcial e descomprometida” e como “uma ferramenta de aprendizagem que tem como objectivo a reflexão e debate em diversos temas relacionados com a arquitectura”4

No entanto, no contexto do crescente protagonismo dos suportes digitais, que papel é que uma little magazine como a NU desempenha na “reflexão e debate” de temas relacionados com a arquitectura? Será um pequeno foco de resistência à migração para o mundo digital ou uma “ferramenta de aprendizagem”, uma plataforma alternativa e necessária para pensar a arquitectura outside the box?

NU opera a partir de Coimbra, numa escola localizada na periferia de um país que, por sua vez, se situa num contexto que Boaventura Sousa Santos classificou como a semi-periferia do sistema mundial5. Adicionalmente, a escola de Coimbra resulta de um processo de miscigenação entre os dois pólos históricos do debate arquitectónico nacional: Lisboa e Porto. Coimbra é a terceira escola. Esta condição de hibridez e de dupla periferialidade parece influenciar as opções editoriais da revista NU. Nos números temáticos Encruzilhadas, Desvios, Onde está Coimbra?, Onde está Portugal?, Marginalidades ou Identidade desafiam-se os limites da zona de conforto da identidade cultural e geográfica. Por outro lado, resgata-se a herança da vocação portuguesa para a diáspora, evocando amiúde o tema da globalização, com expressão significativa nos números dedicados aos temas “Cidades”, “Viagens”, “Oriente” ou “Brasil”. 

A participação na discussão dos temas globais, emanados dos protagonistas do debate arquitectónico sedeados no core do sistema mundial, assume igual protagonismo nas páginas da NU. “Imagem”, “Sexo”, “Revolução Digital”, “Colagens” ou “XXL” repescam assuntos da moda no panorama editorial da disciplina. A revista abre-se a contributos das mais diversas origens, incluindo alguns dos protagonistas do star system profissional e académico. Os alunos do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra (DARQ-UC), os docentes e ex-alunos dessa instituição e de outras congéneres nacionais, contam-se, entre aqueles que regularmente escrevem ou são entrevistados para a revista. No entanto, podemos também encontrar contribuições de personalidades de reputação internacional como Josep Maria Montaner, Beatriz Colomina, Hans Ibelings, Saskia Sassen, Cecil Balmond, Francesco dal Co, Mansilla y Tuñon ou Paulo Mendes da Rocha, entre outros. 

Nos números da NU podemos observar uma aparente tentação para participar no core do debate disciplinar tentando desta forma contrariar a sua periferialidade. Tomando como referência a condição de “hibridismo” que Homi Bhabha identificou nos povos colonizados que cederam parte da sua identidade aos colonizadores sem, no entanto, se fundirem verdadeiramente com eles, pode-se dizer que a revista NU é também vítima de um processo de hibridação6. Apesar da sua condição periférica, a NU procura aproximar-se do seu “colonizador”. No entanto, como refere Felipe Hernández, neste processo aquilo que emerge é “um sujeito apanhado in-
-between
, simultaneamente integrado e rejeitado pelo sistema dominante e incapaz de voltar a nenhuma condição anterior à colonização”7.

Nesta posição, contudo, a revista NU resgata a vocação das little magazines dos anos 1960 e 1970, abrindo o seu espaço à experimentação e muitas vezes até à radicalidade. Assume-se como um espaço autónomo e independente capaz de se constituir como um suporte complementar às plataformas digitais. Assim, se Beatriz Colomina decidir fazer uma sequela da exposição Clip, Stamp, Fold para as little magazines da primeira década do século XXI, aNU poderia certamente ser um dos casos de estudo, contribuindo até com uma associação de alguns dos seus temas para ilustrar alguns dos instrumentos da radicalidade no contexto contemporâneo: Áreas de Contaminação, Espectáculo, Poder.|


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O catálogo desta exposição foi recentemente publicado em: Beatriz Colomina; Craig Buckley (eds.). Clip, Stamp, Fold: The Radical Architecture of Little Magazines, 196x -197x. Barcelona; New York : Actar, 2010. 


Eran Neuman. Little Radicalism: Clip, Stamp, Fold: The Radical Architecture of Little Magazines, 196x-197x. Journal of Architectural Education. 61 th year, nº 3 

(2007), p. 70. 

 

Para mais informação sobre estas revistas, ver o número da NU dedicado ao tema, “Revistas”: NU.  18 (Mar. 2004). A revista ECDJ passou a chamar-se Joelho a 

partir de 2010.

 

4 NU. Nº 35 (Dez. 2010)p. 49.

 

5 Sobre o conceito de semi-periferia ver, por exemplo, o artigo: Boaventura Sousa Santos. Between Prospero and Caliban: Colonialism, Postcolonialism, and Inter-Identity. Luso-Brazilian Review. 39th year, nº 2 (Winter, 2002), p. 9-43. Agradeço ao Prof. José 

António Bandeirinha pela referência a este artigo e ao conceito de semi-periferia.

 

6 Sobre o conceito de hibridação (hybridity) ver Homi K. Bhabha. Signs Taken for Wonders: Questions of Ambivalence and Authority under a Tree outside Delhi, May 1817. Critical Inquiry. 12th year, nº 1 (Autumn, 1985), p. 144-165.

 

7 Felipe Hernàndez. Bhabha for Architects. London : Routledge, 2010, p. 41. Trad. nossa.

 

 

 

 

 

 

 

 


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